domingo, 8 de janeiro de 2017

Últimas Palavras

- Um cheese-egg duplo com maionese a parte, ok? Ah, e um sal de frutas de complemento - disse o condenado. Pedido atendido, menos o sal de frutas que foi motivo de piada na cozinha do presídio. "Pra que curar a azia? vai morrer mesmo."
Demorou além da conta na última refeição e agora estava atrasadíssimo para seu último suspiro. Chegou à sala de execução em passos apressados - um desperdício.
Enquanto Lee, o enfermeiro chinês, mexia em sua bandeja de alumínio, grandes ampolas a vista, Bobby, o carcereiro de porte gigante, indicou a cama ao condenado e disse em tom grave, muito apropriado:

- James William Taylor Carter, pode dizer suas últimas palavras. 
- Pois é, minhas últimas palavras... - disse, pausadamente, o quase-morto, ao se ajeitar no catre.
- Foram essas?
- Não! Claro que não. Pensei muito sobre minhas últimas palavras.
- E?
Jimmy, era esse seu (óbvio) apelido, cruzou as pernas, relaxado:
- Adivinhem qual a palavra mais dita na câmara da morte do Texas, nos últimos anos? 
- O quê?
- Eles anotaram as últimas palavras dos condenados à morte e depois tabularam, viram quais as mais pronunciadas. Vai, gente, adivinha?
- Socorro? - brincou Bobby, um tanto impaciente.
- Deus? - arriscou o enfermeiro, injeção em riste.
- Amor.

Todos riram, foi Bobby quem retomou o cerimonial.

- Só morrem bandidos românticos no Texas. Muito bonito. Mas chega de enrolar, Jimmy. Deita aí.
- Também achei de uma hipocrisia... - e Jimmy deitou, um braço sobre a cabeça, como se estivesse pronto para a siesta. - Amor. Amor não estaria nas minhas últimas palavras.
- Pronto aí, enfermeiro? Vamos acabar logo com isso que a patroa tá esperando pro jantar. 

Ouve-se várias batidas no vidro escuro. Do outro lado, o restrito público, dois guardas e o representante legal da prefeitura, tinha compromissos. Lee tratou de amarrar os pulsos de Jimmy e esse continuou o papo de bar.
- Pois é, pensei muito sobre minhas últimas palavras, tive tempo pra isso. E não vou desperdiçar esse momento com qualquer expressão. Nem com palavras manjadas. Amor, família, desculpas, bla-bla-bla.

Dobrando as mangas da camisa do condenado, Lee quis saber mais:
- No estudo do Texas tinha Deus entre as palavras mais faladas? Tenho certeza que tinha. Aqui todo mundo fala em Deus, né Bobby? 
- Isso aqui é um desfile de caras de pau, isso sim. Figura chega falando em amor, perdão, cita Deus, Jesus, toda a turma do céu, com uma intimidade descarada. O discurso é sempre o mesmo. E o fim também. Pum. Morreu, acabou.
- Pega leve, Bobby...
- Pra quê? Olha só, Jimmy, não vai ter palavrório que te livre. Ta querendo caprichar pra que e pra quem? Nem aqui, nem atrás do vidro tem gente interessado na sua frase inspirada. E outra: a gente não tá no Texas, suas palavras não vão ser... tabuladas, é isso? Tu vai falar e só eu e o Lee vamos escutar essa merda de últimas palavras. 
- Mas que merda, Bobby! - disse Lee, entre o irritado e o solidário.
- Merda. Taí uma que eu nunca ouvi - riu o carcereiro - Nunca ouvi palavrão nenhum nessa porra. Todo mundo vira santo antes de morrer. Ô conveniência. 
- Vai à merda, Bobby - pronunciou Jimmy, com uma calma desconexa com o conteúdo.
- Comequié?
- Vai à merda. Minhas últimas palavras.

Os guardas do outro lado do vidro ficaram confusos com o que se seguiu. O bandido tinha pedido morte por injeção, não por enforcamento.

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