sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

Pouco gelo

Era seu primeiro natal com a família da nova namorada.

Motivo suficiente para se apoiar na bebida, velho truque de socialização. O problema era saber dosar a muleta etílica. 

Começou com a companheira cerveja, amiga dos sábados à tarde depois do futebol. De tão amiga, a loira sequer fez cócegas. Só serviu pra matar a sede e pra mostrar a dura realidade: a ceia se aproximava e nada dele se enturmar. Resolveu apelar para o uísque. Não que gostasse. Nem se lembrava do dia em que tinha tomado uma dose. Formatura do primo? Hum, talvez. Tinha perdido a memória naquele dia...

Aceitou o copo oferecido pelo sogro. 
- Gelo? - perguntou o homem. 
- Pouco, respondeu o rapaz, achando que era a resposta mais acertada. 

Sorveu a bebida ainda quente e lutou bravamente pra não entregar numa careta a pouca familiaridade com o scotch. Sorriu e deu outro gole, este maior. A bebida desceu rasgando - o gosto não parecia tão ruim, pensou. Uma sensação de quentura atingiu seu rosto quase que instantaneamente e ele imaginou ser aquilo um bom sinal. Mais uma golada e o copo ficou vazio, a não ser pela pequena pedra de gelo que nem tinha começado a derreter. A namorada, solícita, serviu-lhe outra dose, generosa demais. Ele mais uma vez bebeu sem requinte algum. Queria logo se sentir “em casa” e, afinal, era quase meia-noite. No terceiro copo, resolveu ir ao banheiro, mas faltaram-lhe as pernas. Voltou a se encostar na parede e começou a rir baixinho daquela situação. 

Não que tivesse se enturmado, mas ele estava tão à vontade com aquela sensação de torpor que nada poderia intimidá-lo. Nem os cochichos das tias de Piracicaba, que apontavam pra ele sem cerimônia. 

- Atenção, atenção, pessoal! Gritou o sogro, batendo com o garfo do peru na garrafa de champanhe – Ta chegando a hora. 

A família, como que ensaiada há anos, fez silêncio e formou uma grande roda em volta do anfitrião. O rapaz então tomou seu lugar, feliz por não ter que se locomover muito de onde estava. Se bem que a falta da parede se fez sentir e ele deu dois passos pra frente e um pra trás. Riu de si mesmo, ainda que contido. 

O momento solene começou com um Pai-Nosso. Todos em coro, compenetrados. E o rapaz, de olhos fechados, percebeu que o mundo gira de verdade. Abriu rapidamente os olhos, com medo da montanha-russa que virou sua cabeça e logo escutou seu nome. 

Todas as cabeças se voltaram para ele, que sorria sem pudor. Deu tempo de escutar o sogro dizendo algo como “...feliz por conhecer finalmente o homem que conquistou o coração da Anete”. Todos bateram palmas, animados. Anete apertou a mão do namorado com força e abriu um largo sorriso. O pai dela continuou: “Espero que este relacionamento dê frutos e aumente ainda mais nossa família, se é que você me entende...”, e piscou. 

Cochichos e risinhos tomaram conta do ambiente e logo depois veio o tal silêncio perturbador de que tanto falam. O rapaz sentiu vários olhares sobre ele e entendeu a deixa. Era preciso falar alguma coisa. Pigarreou e foi logo dizendo: 

- Pode deixar, sogrão! Seu neto já está no meu saco. 

Caiu na gargalhada. A namorada soltou sua mão para levá-la à boca, horrorizada. Muitos na sala fizeram o mesmo. Outros olharam imediatamente para o pai de Anete, solidários.

O moço continuou a gargalhar, num ataque de riso incontrolável. Dois primos adolescentes de Anete se juntara a ele, se dobrando de tanto rir. Um deles ainda teve fôlego pra gritar.

- Uhu, até que enfim um Natal interessante. Bem-vindo à família, primão!

Ainda hoje, nas festas dos Souza, o rapaz recusa terminantemente o uísque, oferecido com insistência pelos tais primos. Não que tenha plena consciência do que aconteceu naquela fatídica noite. Perdeu completamente a memória depois do segundo copo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário