quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

Sorte?


Morreu o tio Jovino. Madrugada de sexta para sábado. Incrível como morre gente no final de semana. Deve ser algum bem-bolado entre o Todo-Poderoso e o poder capitalista, em nome da produtividade. O proletariado espera com tanta fé por um veloriozinho em pleno expediente... mas qual o quê.

Bom, como estava dizendo, tio Jovino se foi. E seu velório estava previsto para durar o sábado todo. Um sábado ensolarado. Um tremendo desperdício, enfim...

A família Martins logo se organizou. Armou um rodízio, de forma que sempre alguém do clã estivesse presente no evento, digamos assim. A matriarca se prontificou para ir na primeira leva, de posse de uma garrafa de café “passadinho naquela hora”. Carol, amuada, topou ajudar no esquema, desde que fosse da turma do final do segundo tempo, lá pelas quatro da tarde, um pouco antes do enterro. Pela importância do momento, e pelo ibope que dá, resolveram que Carol deveria ir com o pai. Time reforçado. Fariam uma bela dupla. 

No caminho para a função, Carol lembrou que até simpatizava com o tio morto. Era uma presença serena, uma existência quase nula. Gostava disso. Já a tia Zélia, ah, aturá-la era um parto. Natural. À fórceps. Inevitável no Natal, nas festas de casamento - e nos enterros. 

O cemitério estava bombando (comprovando a tese que abre essa crônica). E o velório do Tio Jovino era um dos mais populares. Senhorinhas de preto, com seus indefectíveis leques rendados, dividiam espaço com senhores curvados – e castigados - pela idade. Destoando, algumas crianças passavam correndo e gritando, alheias aos protocolos. 

A cena se tornava fúnebre mesmo bem perto da entrada de velório. Sob o sol forte, o cheiro das coroas de flores era quase insuportável – se a morte tem cheiro, é esse. Por que, afinal, flor no cemitério não exala perfume, e sim fedor? 

Absorta em pensamentos botânicos, Carol penetrou o recinto cumprimentando as pessoas em modo automático. Avistou a viúva e, junto com o pai, fez fila para as condolências oficiais. Na sua vez, Carol assumiu a expressão default de luto. Arqueou as sobrancelhas - sinal inequívoco de tristeza -baixou a voz um tom e sussurou:

- Tia Zélia... sinto muito.
- Ah, minha filha, minha filha...

Recebeu um abraço forte. E uma fungada bem ao pé do ouvido. Desvencilhou-se, cuidadosa.

- Ô, tia... tsc, tsc, tsc... 

Sem ter o que dizer, Carol ainda pensou quão providencial seria um pequeno manual com frases feitas para ocasiões como aquela.

Olhando sobre o ombro da sobrinha, como que procurando algo ou alguém, tia Zélia enxugou as lágrimas e lascou:

- Ué, Carolzinha, cadê o Duda?
- Bom, tia... acabou. O namoro acabou... er... 
- Filha, filha – segurando as mãos de Carol, penalizada – tadinha, Carolzinha... você não tem mesmo sorte no amor, né? 

A fila do cumprimento ganhou forma e, sem cerimônia, uma das senhorinhas do leque rendado empurrou Carol dali. Foi então que ela viu o cadáver. Tio Jovino. Mais inerte do que nunca. Paletó de quinta – o mesmo usado nos últimos 5 casamentos da família - e uma inédita boca murcha. Tio Jovino. Mortinho, mortinho. 

Carol não evita um sorriso de canto de boca e o peito estufado ao pensar que a azarada ali era a Tia Zélia. Viúva Zélia. Uma vida inteira dedicada a um único homem. E esse homem estava agora morto. Se foi. Acabou. E ela está sozinha. Que falta de sorte, hein Tia Zélia? Tsc, tsc, tsc...

O tempo foi passando e Carol permaneceu ali, ao lado do tio. Do sorriso sarcástico, não sobrou nada. O olhar se perdeu, os ombros caíram. A postura era digna de pena. Vez ou outra, ela suspirava profunda e ruidosamente. Até que, na iminência de fechar o caixão, ela desabou no choro. Um choro sentido, desesperado. Bonito de se ver. 

- Ela era muito ligada ao tio... – comentou o pai, orgulhosíssimo, para a pequena platéia presente.

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