terça-feira, 10 de janeiro de 2017

Dois e dois

Acabou. Não existe mais. Quem aproveitou, aproveitou. A nova geração nunca vai saber como é dançar música lenta. Uma morte triste, a se lamentar profundamente.

Dançar coladinho é um comportamento extinto. Não consigo precisar quando e como aconteceu. Mas o fato é que não existe mais o ritual da música lenta. Um ritual que, ao primeiro acorde de um Lionel Ritchie da vida, fazia as garotas experimentarem um frio na espinha, e os rapazes tomarem a iniciativa da conquista.

De um lado, ficavam as meninas, cheias de expectativas. De outro, estavam os garotos, a caminho de seus alvos. Uns esticavam a mão, gentis. Outros, mais auto-confiantes, apenas acenavam com a cabeça. Sorrisos tímidos, olhares sem graça, passos desengonçados. E dava início o jogo. Uma versão ultraromântica do caçador-atrás-da-sua caça. Mas que fique claro: um abate consentido, desejado, com uma trilha sonora inspiradíssima.

Ao som de hits do Earth, Wind & Fire, o homem desenvolvia a determinação. Passava por cima das suas inseguranças. Era a auto-estima se fortalecendo. Já a mulher aprendia a usar artifícios sutis de sedução, para se destacar entre as concorrentes e ser a escolhida. Ainda que lhe restassem manhas e artimanhas, por ser a caça, a mulher treinava a paciência. E esbanjava feminilidade. Parece careta, antiquado, mas era assim que funcionava, e assim muita gente foi feliz. Fui felicíssima.

Se a “lenta” inspirava comportamentos, o que dizer da revolução na libido dos jovens, diante do contato físico? Seios comprimidos em peitos masculinos, rostos colados, um pescoço desnudo convidativo, perfume no ar, o controle quase sobrenatural dos instintos mais “baixos”. Palavras ditas ao pé do ouvido. Sussuros. Carinhos sutis nas costas. Mãos que denotam nervosismo. Isso sem falar no ápice do beijo, quando ele acontecia. Sempre no momento mais sublime da música do Brian Adams.

Pressa para quê? O jogo da sedução podia durar o bailinho inteiro. Às vezes, atravessava toda uma temporada de festas. Nesse meio tempo, a libido se misturava ao romantismo, virava uma coisa única, algo que trazia valor ao processo. Rendia sonhos, fomentava o amor. Tudo por conta da magia da música lenta.

Magia que os jovens de hoje sequer imaginam como funciona. Porque eles não sabem mais se encostar sem beijar. Porque eles são da turma do “ficar”. Porque eles não passaram pelo treino que é dançar uma, várias músicas, corpo colado, segurando o ímpeto do beijo. E – mais que isso – curtindo cada momento, construindo um caminho que faça do beijo algo absolutamente inesquecível.

Sem o advento da música lenta, o jovem se tornou imediatista. Sem tato. Destreinado para preliminares. Despreparado para o romantismo. Ejaculador precoce. Além de péssimo dançarino.
Pena, não?

Amizade com steinhager

- E se a gente se beijasse? - disse o amigo manguaçado para a amiga também amaciada pela cerveja com steinhager.
- Beijar? Beijar como? 
- Ué, beijar. Na boca.
- E amigos beijam na boca, ô Túlio? - riu, encostando a cabeça no peito dele.
Túlio segurou o queixo da moça, forçando um contato visual: - Amigos podem fazer qualquer coisa. Um selinho. Só pra ver como é. Para de ser chata...
- Bom... selinho tudo bem. 


Rebeca fechou os olhos e sentiu a boca de Túlio. Era bom. Era muito bom, hein? E ficaram ali um tempão, um selinho eterno... Por fim, abriram os olhos em efeito slow motion, cara de bobos. Era muito bom.

- Beca, posso ... - ele ia dizendo. Mas quem disse que a boca-louca de Rebeca deixou? O que veio a seguir foi um senhor beijo, esfomeado, daqueles que só uma boa parede de alvenaria era capaz de suportar. Era um beijo com sincronia e verdade. Paixão e ritmo. E não tinha fim. 

Mas acabou quando algum engraçadinho na rua buzinou e mandou os dois procurarem o motel mais próximo. Eles se encararam: bateu vergonha, dúvida. Resolveram voltar pra festa. "O que a turma deve estar pensando?" Lá, cada um ficou num canto, sorvendo suas bebidas, o que ficou bem esquisito, já que eles eram grudados, ele era o palhaço da turma, ela era a rainha das pistas. Quietos, estranhos. E, assim, a noite se arrastou, com os dois fervendo por dentro, vontade louca de continuar o que faziam lá fora - só banho e cama podiam resolver.

Não resolveu. E eles resolveram conversar. Tinham algumas saídas: fingir que nada tinha acontecido e reestabelecer a amizade, assumir que a amizade foi pro beleléu e curtir o momento, ou terminar tudo: amizade e romance.

- Ou ficar com tudo - falou um Túlio empolgado, cara de "eureca".
- Que quer dizer...
- Ficar com a amizade e a transa. Por que tem que escolher entre uma coisa ótima e uma coisa melhor ainda? Pensa.
- Eu... eu sei lá. Mas, peraí, que transa? 

Sabe-se lá como, Túlio e Rebeca conseguiram ficar com os dois, o que quer dizer lidar também com o ônus de saber tudo um do outro ("olha lá o melhor sexo que você teve, acabou de chegar na festa" ou "eu sei que você morre de tesão pela Cristina..."). Mas a amizade e seus bônus - compreensão, generosidade, companheirismo, entrega, bom humor blablabla - levam vantagem sobre todo o resto. E temperados pela química, então...

segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

Disk-ilusão

- Que sorrisinho é esse?
- Mensagem do cara!
- E?

Ela mostra o celular, toda orgulhosa. O whatsapp não deixa dúvidas. O cara requer a presença de Aline. Naquele momento. "Tô te esperando, num demora. C". 

Mais que depressa, Aline sacou uma nota de R$ 50 da bolsa, estendendo-a sob a garrafa de cerveja.

- Ei, espera aí. Toma mais uma. A gente acabou de chegar. 
- Nem dá, Gil... O cara tá me esperando.
- Eu li, mas é, tipo assim, delivery? Ligou, recebeu em casa?
- Ai amiga, não é isso. Eu tô super na pegada. Nosso lance é assim, sem compromisso. Garçom? GARÇOM! Suspende minha empanada. Tô vazando!
- Então o lance tá resolvido na sua cabeça, que bom! Mas e se ele quisesse namorar?

Já de pé, ela responde de bate-pronto:

- Eu namoraria no ato, gata, é claro.
- E, me diz: esse delivery rola faz quanto tempo?
- Delivery? Ah, sua chata!
- Quanto tempo, hein?
- Ah, acho que uns 4 anos... por aí. É muita química, é pegação... é tão bom, Gil. Tô indoooo...
- Tá, vai nessa, sua louca. Mas e a reunião de amanhã cedo? Você vai com essa roupa mesmo? 
- Imagina, vou pra casa depois.
- Pra casa? Tarde da noite? Porque não dorme no cara?
- Eu nunca durmo no cara. Nunca dormi. 
- Nunca-nunca? Porque isso?
- Faz parte das regras. Eu acho... 

Aline arria na cadeira gelada de alumínio.

- Acha?
- Ele nunca me convidou pra dormir lá. Tipo, acaba nosso amorzinho, eu me arrumo e vou embora. Seja a hora que for... e vou... embora. Pra minha casa, que é longe pra caramba... e...
- E? 
- Ele me diz pra eu ligar quando chego em casa, mas nunca atende a porra do celular. Me fala depois que dormiu, que tava cansadão. Mas que fica tranquilo porque vê no dia seguinte que eu liguei.
- Aline... 
- Ele se importa, Gil. Do jeito dele, mas se importa, sabe?
- Amiga...
- Ele nunca me prometeu nada e... pô...
- Vem cá, vem. Não fica assim.

As duas se abraçam demoradamente. O garçom olha a cena, comovido - e um tanto excitado.

Luz(cidez)

Fez uma grande, uma enorme descoberta e, a partir dali, em estado de choque, passou a ver o que a cercava em câmera lenta, com cores saturadas e leves distorções. Uma música triste –sabe-se lá como - entrou na cena, perfeita trilha sonora para o que acabara de descobrir. 

Foi naquele momento, sem razão de ser, que ela teve a certeza de que tudo o que sentia, todo aquele amor, aquela urgência, não passava de um grandessíssimo mal-entendido. Ela definitivamente não gostava dele. 

Gostava, sim, do que ele representava para ela. Parecia sutil, mas quando ela finalmente enxergou a diferença, percebeu o quão gigantesco era o abismo que separava aquele sentimento menor do amor.

Foi preciso esfregar os olhos, respirar fundo e ordenar as emoções. Já sabia o que se passava, de verdade. Era hora de descobrir o que fazer com a revelação. Descartando, por motivos óbvios, a hipótese de sair em disparada, leve e louca, bradando “eureka”.

Estudo de caso

Amizade entre homem e mulher?
Ô, colega, assunto irritante...
Por quê?
Porque... porque sim. Eu até acreditava em amizade entre os sexos - e sem sexo. Mas olhando bem de perto, bem de pertinho, eu tive que reconsiderar.

A Fê, por exemplo. Amigaça. Boa de papo, uma cabeça... Sempre tem um conselho bacana, uma opinião interessante. Crânio. Mas é feia. Bem, não é assim feia, feia... É sem graça. Eu não pegaria, sabe? Meio tábua, sem curvas, um nariz avantajado. Inteligente-feia, manja a peça? Quando usei minha relação com a Fê pra defender a amizade entre homem e mulher, vieram com a pérola: "homem só consegue ser amigo de mulher feia". Fiquei de cara com isso! Mas, pensando bem, o fato dela ser, assim, sem sal, ajuda. Adoro a Fê, puxa... Mas, não rola.

Ah, tem a Claudia também. Claudinha. Gata, viu? Tão gata que, logo que conheci, tive que ir pra cima. A gente ficou junto tipo umas 3, 4 vezes. Altas loucuras. Mas daí o tempo passou, a química esfriou, pintaram umas amigas dela muito das interessantes... Só sei que a gente partiu pra amizade. Foi natural. Apresentei os caras pra ela, ela socializou as amigas, cada um rodou a banca do outro... Tudo na irmandade. Até porque ela é muito engraçada, a gente morre de rir na companhia um do outro.

Olha, eu sempre me vangloriei da amizade com a Claudinha, mas aí me disseram: “assim não vale. A amizade de vocês só rola porque a tensão sexual não existe mais”. Então quer dizer que a gente só consegue ser amigo de verdade porque já nos "experimentamos"? Pois é, colega. Disseram que é por causa disso.

Dia desses, o Chicão veio me pilhar com esse papo de amizade entre homem e mulher lançando a tese, segundo ele, definitiva: “só é amizade mesmo se você passar pelo teste da cama”. Decifrando: amigo que é amigo passa a noite numa mesma cama e nada, mas NADA mesmo acontece. Nem pau duro, nada, disse o Chicão. Ai o Chicão me instigou...

Encuquei na hora. A Fê, por exemplo. Eu dormiria com a Fê. Mas e se ela viesse se encostando, luz apagada e tal... Me conheço! De luz apagada é sacanagem.

A Claudinha? Podia até passar no teste com a Claudinha. M-A-S – e sempre tem o “mas” – só se não rolarem confissões de alcova antes de dormir. Ô mania que ela tem de falar sobre as transas dela... Aí, ó, só de pensar fico “esperto”.

Então, e tem a Lara. Te falei da Lara? A Lara é lá do bairro. Amiga desde, ah, cara, desde sempre. Ela é molecona, sabe? Desbocada. Sem frescuras, nunca teve vaidade, esses papos de se vestir assim-assado, decote, roupa justa, essas paradas. A gente era amigo tipo brother. De ir junto pro estádio, de tomar todas no bar. Amigos o suficiente até pra fazer uma proposta ousada.

Sem rodeio, falei pra Lara da tese do Chicão. O teste da cama. E da minha intenção de desbancar o "dr." Chicão em seu mestrado sobre o assunto. Exagerada, a Lara soltou um palavrão, riu com gosto - e topou.

Pra apimentar a brincadeira, a gente combinou de dormirmos num motelzinho fuleiro perto de casa – numa quarta-feira, dia de jogo na TV, claro. Foi chegar, ela deu as ordens: “coloca na Globo e pega uma cerveja pra gente!”. Então sumiu no banheiro.

Passou um tempo - e, confesso, tinha até me esquecido da Lara (o jogo tava lá-e-cá) - ela reaparece vestida com um, como chama aquilo? Um babydoll, micro, micro.

Como se fosse a coisa mais normal do mundo estar seminua do lado do seu “brou”, ela pulou na cama, xingou o juiz e roubou a cerveja da minha mão.

“Que sede!”, disse ela, sacando sua frase-padrão-pré-primeiro-gole-de-cerveja. E, default, tomou um senhor gole.

Um pouco de cerveja escapou da boca rósea e carnuda da Lara que tentou, em vão, conter o líquido passando sua língua molhada preguiçosamente por ali. O filete de cerveja seguiu pescoço abaixo e tomou o rumo do decote dela, emparedado pelos tenros morros morenos que despontavam por ali e então... então eu não aguentei.

Aquilo era demais, DEMAIS.

Fui embora, indignado. Puto.
Isso é coisa que uma amiga de verdade faça?

(desde aquela noite, tenho evitado o Chicão...)

Que bom que você veio

"Oi. Que bom que você veio. Me acompanha no vinho?"

"Garçom? Desculpa... chama você, claro."

"Então, você deve ter estranhado meu convite. Mas é que preciso muito esclarecer umas coisas. Vou direto ao assunto, tá?"

"O vinho tá ótimo, verdade. Pois é... Por que a gente terminou mesmo? Quer dizer... porque a gente brigou eu sei. O que eu não sei é porque depois você não quis voltar? Não era motivo pra terminar tudo, era? Fala a verdade, abre seu coração. Eu não to desenterrando isso pra gente ficar junto, eu sei que acabou."

"Tô sabendo do seu casamento... parabéns, viu? Foi rápido, né? Bacana... Mas é que tô num momento de resolver questões pendentes na minha vida e..."

"...isso, tô fazendo terapia, é muito bacana, você devia tentar um dia, todo mundo devia. Então... nosso término é uma questão pendente pra mim. Tipo, eu não entendo o que aconteceu. Me explica?"

"Ahã...
sei...
lembro disso, claro..."

"Mas não pode ter sido só por causa disso e..."

"Ahã... jura? Você se sentia assim?"

"Mas então foi culpa minha? Não? Ahã... tem certeza?"

"É claro que me sinto culpada, pô, a gente tinha uma coisa tão sensacional... fico pensando: onde eu errei?"

"Quero mais vinho sim, obrigada."

"Ah, vai, devo ter errado em algo... Em algo grande pra você ter deixado de me amar e...
Porque você me amava, né? É que você dizia que me amava..."

"Como assim, talvez?"

"É, eu lembro, na cama era fantástico, mas não dá pra confundir. Acho."

"Mas, se você não me amava, tudo faz sentido agora. Terminou porque você não me amava. Simples. Não existe mais ou menos."

"Brava? Não... to brava não."

"É, to rindo, mas é de alívio. Sério. Na verdade não tive culpa. E eu achando esse tempo todo que eu tinha estragado tudo. Nem tinha nada pra estragar..."

"Que bom. Bom mesmo... Puxa... nada como conversar pra resolver as coisas, né?"

"Putz, muito bom que você veio. Quero mais vinho sim, obrigada."

Perspectiva

Ele sempre viveu como se fosse morrer cedo. 
Não que verbalizasse isso: “vou morrer cedo”. 
Mórbido demais.
Mas essa urgência de viver, essa falta de compromisso com as coisas e as pessoas... só podia ser a certeza de que não duraria para sempre. 
Não duraria nem algumas horas, bem dizer.

Era elétrico. Energético.
Despreocupado. 
Mão aberta. Duro e endividado.

Aproveitava até a última gota. 
Ia fundo até o último fôlego.
Vivia do agora,
como se tudo pudesse terminar a qualquer momento.

“E não é isso mesmo?”, dizia sempre, profundo (ou irônico?)
“Atenção, pode ser o último segundo da sua vida”. 
E soltava uma risada meio nervosa, angustiada,
antes de sair agitado atrás de alguma emoção não vivida.

Mas então a conheceu.
...
...
...
E pela primeira vez na vida torceu para que o agora
durasse para sempre.

Mentiras Sinceras

Sara já disse a verdade numa época. Muitas verdades. 

Na verdade, até uma certa idade ela só dizia a verdade. 
Formação romano-cristã, tinham ensinado a ela que o certo era ser sincera. E que isso lhe garantia o céu.

Nesta época, dizia a quem queria escutar todas as suas vontades e verdades. Sua vida era como um livro escancarado. Era uma mulher independente e adorava verbalizar isso. Tinha personalidade forte e deixava claro nas suas tomadas de posições. Era bem resolvida, sabia o que queria, como queria, sem papas na língua. 

E era sozinha. Tremendamente sozinha.

Hoje as coisas mudaram. Sara mudou. Faz algum tempo que não diz mais a verdade. 


Da boca dela, por exemplo, não sai mais nada a respeito da sua carreira bem sucedida. Ela nem se vangloria a respeito dos bens que acumulou. Seus luxos são mantidos em segredo. Para todos os efeitos, tudo o que ela tem veio dos seus pais. A profissão é mal-remunerada, diz. E inventou um cheque especial implacável, que a priva de mimos. Sim, ela depende de seu homem hoje. Aceita que ele pague todas as contas. Que a busque em casa (seu carro é popular, precisa de revisão urgente). E que decida por viagens mais modestas, de forma que ele possa arcar com as despesas – e que ela, vez ou outra, pague a sobremesa do jantar. Por delicadeza. 

No sexo? Ah, no sexo.. ela não ousa dizer que não gozou, nem tenta ser franca e dizer o que realmente a satisfaz. Aquilo parecia inadequado quando ela era adepta da verdade. As caras assustadas – e frustradas - de seus amantes indicavam o caminho ideal para um bom e longo relacionamento. Fingir o gozo, simular o prazer. Hoje, ela finge, e finge bem. Anos de treino a deram a segurança de uma atriz tarimbada na hora do sexo. O papel está internalizado. Ela nem tem mais a esperança de chegar lá espontaneamente. Ou simplesmente a questão do papel a desempenhar não deixe espaço para o prazer verdadeiro. Verdades não cabem em sua cama. Não mais. Hoje ela finge. E ele goza. Sistematicamente.

Essas e outras mentiras, aperfeiçoadas com o tempo, garantiram a Sara, finalmente, um relacionamento duradouro. O namoro com Carlos, ou o milagre, como ela sempre brinca, dura 2 anos. 

Anos de mentiras renderam também uma bulimia. Se ela tem que engolir tantas mentiras, não sobra espaço para a comida. Taí uma verdade.

domingo, 8 de janeiro de 2017

Check-in

Da poltrona 14b, Nádia esticava o lindo pescoçinho, aflita. O vôo era para Brasília, e vôos para Brasília eram especialmente interessantes. Principalmente para ela, que tinha uma convicção na vida: iria encontrar o homem da sua vida “nos ares”. E Nádia sabia exatamente como começou essa certeza. 

Era menina-moça, 13 anos, seios ainda em formação, boca virgem, como era todo o resto. Numa "Sessão da Tarde" qualquer, ela se encantou com um filme. A mulher, desgostosa da vida, tomou um avião de volta para sua terra natal. No auge da sua desesperança (tinha rompido com sua alma-gêmea), mal notou o homem que sentou ao seu lado. Resumo da trama: entre turbulências e silêncios constrangedores, os dois se apaixonaram. A 300 mil pés de altura, em parcos 90 minutos de vôo. Daquela tarde em diante, Nádia via, em cada trecho voado, uma oportunidade mágica de, finalmente, ser feliz no tal jogo do amor. 

Pensou até em ser aeromoça, mas a taquicardia que sentia toda vez que pisava dentro de um avião a fez recuar. O que podia fazer (e fez) foi arrumar um trabalho que a colocasse constantemente em altitude de cruzeiro. Representante comercial de uma grande empresa. Era, no mínimo, uma viagem por semana – e uma vez por semana ela se dispunha a sofrer um pouco. Já se passavam 2 anos nessa função. Nada do grande amor acontecer. E nada de passar o medo de voar.

Brasília era sempre uma excelente pedida. 95% dos passageiros eram homens. 80% engravatados. Nadia, definitivamente, gostava dos almofadinhas. Dessa vez ia acontecer, ela tinha certeza. 

Interessantes espécimes masculinos passavam pelo corredor, olhando seus tickets e conferindo seus lugares. Um, muito charmoso, depois de ficar em dúvida perto da fila 14, (e deixar Nádia sem fôlego) sentou-se na 13. Dois rapazes, lindos, diminuíram o passo quando viram Nádia. Cochicharam entre si, sorriram, mas passaram direto – eram da turma do fundão. 

O fluxo de passageiros estava rareando, e nada de aparecer seus companheiros de fileira. Fazia 6 meses que Nádia tinha mudado a tática: desde então, pedia a poltrona do meio (“pra aumentar as chances”, ela explicava às amigas, que acompanhavam sua saga, entre risos e suspiros de pena da pobrezinha). 

Ao ajeitar sua bolsa sob seus pés, Nádia escutou uma voz grave: - “licença?”. 
Seus olhos radiografaram demoradamente aquele corpo grande e másculo, vestindo um impecável terno azul escuro. Se ateve no peitoral desenvolvido do rapaz, até chegar ao rosto. E que rosto. Maxilar quadrado, barba cerrada, sorriso encantador e olhos escuros acompanhados de cílios grandes. Era um conjunto incrivelmente sedutor.
Com dificuldade, Nádia levantou-se. Tentou um sorriso sexy e respondeu, em tom baixo: - “pois não”.

Foi então que Nádia viu. Atrás do tal estava uma mulher alta, magra, cabelos curtos, rosto perfeito. E de mãos dadas com o ex-futuro amor de Nádia.
- Querida, vá você na janelinha, eu fico no corredor. – e virou-se para Nádia, mais sedutor que nunca. - A não ser que a moça troque de lugar comigo.
- Claro, claro...
- É que eu morro de medo de avião, preciso segurar a mão dele pra me acalmar. – disse a modelão, mostrando dentes alvos e, como ela, perfeitos.

Nádia abriu espaço para o casal, enquanto sentia seu rosto arroxear. Os ombros despencaram, dando a Nádia a figura da própria derrota. Uma cena de dar dó.

Brasília nunca foi tão longe. Folheando sem ler a entediante revista de bordo, Nádia esforçava-se para não fixar o olhar nas mãos entrelaçadas dos pombinhos ao lado. Era muito azar, remoía. Nem era falta de sorte. Era azar, dos grandes. Nunca, nunca, tivera a oportunidade de se sentar ao lado de algum homem interessante nos vôos semanais que fazia. Eram hordas de velhos, ou obesos, ou ensebados. Quando não eram tudo isso junto. Houveram muitos nerds com seus notebooks, muitos rapazinhos cheios de espinhas na cara, dezenas de crianças agitadas e barulhentas. Mulheres? De todas as formas e tamanhos. Já tinha se empolgado algumas vezes com homens bonitos ao seu lado, mas a euforia passava logo: eram gays. Interessados, sem exceção, nos comissários de bordo.

Era um azar enorme. Melhor rever sua tática. Mudar de emprego. Trabalhar numa repartição pública e desistir dos vôos. E dos homens. 

Na volta para São Paulo, Nádia não se preocupou com maquiagem. Nem se esmerou em escolher a melhor roupa. Até esqueceu de colocar perfume. De cara limpa, tailler cinza-Brasília, envelheceu 10 anos. Fez o check-in sem ânimo, mais preocupada em checar emails no seu iphone. A atendente, solícita:
- Janela ou corredor?
- Tanto faz. O vôo tá no horário, né?

A moça fez que sim e, antes de assinalar a poltrona daquela passageira tão insípida, ouviu o comando vindo de seu discreto “ponto”, colocado estrategicamente em sua orelha esquerda:
- Põe essa aí do lado de um bonitão. Perigo zero.
A atendente olha a tela do computador. A figura de um avião, quase lotado, tem poltronas em cores diversas. Assinala a 9C, que ganha a cor pastel. Na 9B, uma poltrona azul-celeste.

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Longe dali, na CAF (Central das Aeroviárias Felizes), o trabalho ferve. Centenas de moças, barulhentas e muito maquiadas, falam alto em seus telefones pendurados na orelha, enquanto apertam os olhos, atentas às imagens geradas por câmeras instaladas nos check-ins de vários aeroportos. 

O trabalho aumentou muito nos últimos anos, reclamaram na última reunião do sindicato. O número de mulheres bonitas viajando sozinhas - ou seja, concorrentes - cresceu consideravelmente. Não estava fácil garantir que os melhores partidos do país estivessem sempre disponíveis para as aeromoças e demais profissionais do setor aeronáutico. Era preciso reforços. 

Pelo bem da aviação nacional.

O que se quer ouvir

Tudo o que uma mulher quer ouvir é “eu cuido de você”.

“Eu cuido de você” fala mais fundo do que “eu te amo”, “estou apaixonado por você” ou “você é a mulher da minha vida”.

“Eu cuido de você” tem profundidade, responsabilidade, doçura, envolvimento sem barreiras. “Eu cuido de você” sugere futuro, segurança, compromisso. E um bem-querer absoluto.

Uma mulher quer ser cuidada, não venerada.
A veneração tem data de validade, o cuidado é perene.

Mulheres, mesmo as independentes, precisam se sentir protegidas. Precisam de alguém que cuide delas. E cuidar não requer muita coisa. Pode ser um sorriso na hora certa, um segurar as mão com mais força, um olhar definitivo, aquele de cumplicidade, de pode contar comigo.

“Eu cuido de você” é uma frase que faz qualquer homem parecer maior. Depois dela, o abraço fica mais gostoso, o colo é de um aconchego indescritível. Fácil, lágrimas brotam dos olhos das mulheres que escutam “eu cuido de você”. Porque com a declaração vem uma sensação de, enfim, sossego. Chega de procurar! Aqui está aquele que eu tanto esperei.

“Eu cuido de você” é o ápice do envolvimento. É onde nós, mulheres, queremos chegar. E onde os homens que experimentam o amor verdadeiro vão estar um dia. Mesmo eles vão sentir, nessa hora, uma paz infinita. São em momentos como esse que as almas realmente se encontram. E que os papéis são definidos. Papéis que se perderam com o tempo, mas que nunca deixaram de ter sua mágica.

Mosca branca

Ele acabara de dizer “a” frase. A tal, que volta e meia fazia as honras na vida de Raquel, sempre em momentos estratégicos, quando tudo parecia ir maravilhosamente bem. Bem até demais.

- Você é uma mulher rara, tipo uma mosca branca. Tenho medo de você.

Essa era “a” frase. O ineditismo ficou por conta da expressão “mosca branca”. Mas o “medo de você” era manjadíssimo.

Raquel bem que tentou, mas não houve jeito: revirou os olhos, sinal claro de que aquele papo era pra lá de familiar. Com o maxilar travado, sentindo a boca secar instantaneamente, começou um origami patético com o guardanapo da mesa do bar. E resolveu fugir dali. Em pensamento.

Não foi muito longe. Voltou alguns meses, talvez um ano, numa sessão de cinema privê com seu “prospect” da época. Vinho argentino, filme espanhol, tudo caminhando para uma noite calientíssima. Mas então veio “a” frase: 
- Você me dá medo, sabia?
- Ahn? Como assim?
- Não é medo, medo... você é muito pra mim. Sei lá. Não consigo administrar e...

Raquel dobrou mais uma vez o guardanapo e cerrou os olhos, em busca de alguma boa lembrança que, definitivamente, a tirasse daquele embaraço. Rememorou um dia quente de verão, no escritório, nos idos de 2012. Tinha recebido um email do ex-amigo, que tinha virado amante e que dava pinta de ser seu mais novo namorado. 

A mensagem começava assim:
- Quel, Quel! Você é uma Ferrari...
Uau, pensou Raquel. Ajeitou-se na cadeira, toda-toda, enrolando os cabelos com os dedos, para continuar a leitura:
- E eu sou, tipo assim, um Rubinho Barrichello. Não sei pilotar uma Ferrari, Quelzinha. Simplesmente não sei. Vexame, né?

Raquel sentiu seu estômago revirar e então foi despertada pela voz do paquera no bar:
- Você tá legal? Raqueeel? Quer mais um chope ou alguma outra coisa?
- Me dá um gole da sua H2o?

Sorveu o líquido insosso e, ao senti-lo queimar as entranhas, lembrou da conversa que teve com o dito homem-da-sua-vida. Podia até se lembrar da data e hora exatas, enfim:

- Mas, Gustavo... Você até queria se casar comigo e, do nada, pulou fora. Voltou pra sua primeira namorada... eu, eu... desculpa. Mas eu só queria entender. Pra poder seguir com a minha vida, sabe? Queria saber onde eu errei. Quero me livrar disso...
- Você não errou em nada, minha linda. Eu... sei lá... Quer saber? Eu me sentia ameaçado. Do seu lado eu era o namorado da Raquel. Com a Camila, eu sou o Gustavo! O homem da vida dela. 
- Mas você é... você era o homem da minha vida! 
- Você dizia isso, mas como eu podia acreditar? Você tinha sua casa, seu carro, sua carreira, sua independência. Pra que ia precisar de mim? E eu começando um trabalho novo, ainda batalhando pelas minhas coisas... Vê? Eu me sentia um qualquer do seu lado. A verdade, gata, é que você me deu medo! 

Raquel sentiu a H2o voltar pela garganta. Tentou tapar a boca e evitar o desastre. Mas a bebida voltou com a força de um tsunami. Explodiu entre os dedos, pelo nariz, atingindo um raio recorde de vários metros. Foi um Deus nos acuda. 
Num misto de vergonha, desespero e ira, Raquel levantou-se. Mas antes de ir, enxugou a boca na manga da cara blusa que vestia e disparou:

- Mosca branca a putaqueopariu!

Divã


Aquela sessão prometia ser particularmente dolorosa. 

Tereza queria fugir da tarefa de contar em detalhes o término escandaloso do seu pseudo-relacionamento. Não queria relembrar a humilhação que passou ao ver seu “rolo” apresentando aquela fulana para todos os amigos como sua “nova namorada”. 

Namorada? Como, se o fato dele ter sido um mero “rolo” era justamente porque ele não estava pronto para compromisso? Não naquele momento? 

Ela estava realmente destruída. Era difícil repassar toda a história com sua terapeuta, mas mais difícil ainda era lidar com ela, a história, sozinha. Pediu para antecipar a sessão, e, pela primeira vez em seis meses de terapia, chegou antes do horário. Folheou, distraída, algumas revistas, esperando que os minutos passassem logo e a tortura do desabafo, idem. 

Então, a porta se abriu e se ouvia a voz animada de Dayse (ela sempre estava animada) se despedindo de alguém. Tereza levantou o rosto amassado a contragosto e avistou "ele": um belo espécime engravatado, num alinhadíssimo terno escuro. Seu perfume encheu a recepção e quando ele olhou para Tereza, ainda sorria. 

A moça, num ímpeto, se levantou e os dois ficaram cara a cara, em situação embaraçosa, espremidos entre a poltrona e a mesinha de centro. Sorriram, se desvencilharam, ele se foi e ela deu de cara consigo mesmo, no espelho da sala. 

Checou sua figura e corou: olheiras profundas, cabelo em dia ruim, calça de moletom. Por alguns segundos, Tereza não pensou no seu ex-que-nunca-foi-namorado. Pensou, isso sim, naquele homem cheiroso que a tinha visto num dos meus piores dias. E quis se matar. Não literalmente.

Dayse cumprimentou Tereza com um enorme sorriso e sacou: “bonitão, né?”. A sessão começou diferente do previsto. Depois daquele flerte desajeitado, Tereza reavaliou sua história - ela pareceu menos trágica - e o desfecho, quase uma benção, uma chance para que algo realmente importante aconteça.

Meses se passaram. Com a ajuda de Dayse, que transferiu a sessão de Tereza para o mesmo dia da de Cleber (esse é o nome do bonitão), os “analisados” trocaram telefones, saíram algumas vezes, começaram a namorar. Por conta da ética, um deles precisava sair da terapia e foi assim que Tereza deu adeus ao trabalho com Dayse, fortalecida pelo novo e quase perfeito relacionamento amoroso. 

Quase, eu disse. 

Porque Cleber oscilava o humor com freqüência, explicando ser reflexo daquele momento crucial da terapia. E sua falta de paciência com Tereza aumentava a cada dia.

Até que Cleber sumiu. Tereza ficou transtornada e a primeira coisa que lhe ocorreu foi procurar Dayse. Com ela, conseguiria notícias do amado, ou, na pior das hipóteses, recomeçaria a terapia para juntar os cacos.

Não encontrou a psicóloga. Segundo a vizinha, Tereza tinha fechado a clínica e se mudado para Santos. Tudo em nome de um novo amor de nome ... “como era mesmo? Ah, Cleber”.

Perfeição

No meu mundo perfeito o final de semana teria 3 dias. Chocolate não engordaria. O amor não teria fim, nem a paixão seria cega e tão estúpida.

No meu mundo perfeito, iria a pé pro trabalho, e voltaria pra almoçar com meu filho, todos os dias.

Chefe? Só se fosse realmente mais inteligente e capaz que a gente. E os salários seriam justos. De acordo com o rendimento. Talvez já fosse uma pessoa rica no meu mundo perfeito...

No meu mundo perfeito homem não se sentiria diminuído por mulher vencedora. E a mulher não perderia sua feminilidade na busca por uma igualdade idiota, que não faz sentido pra ninguém. Então, neste mundo, homem seria homem, mulher seria mulher, independentemente de quem ganha mais, quem foi mais longe na carreira, e essas bullshitagens. Quando estivessem juntos, abraçados, ficaria bem claro quem protege e quem é protegida, quem é a fortaleza e quem é a leveza. Côncavo e convexo, in e yang.

No meu mundo perfeito, assim que a cabeça encostasse no travesseiro, todas as preocupações sumiriam como que por encanto, e o sono chegaria como um carinho, uma recompensa. E acordaríamos (tarde) refeitos, inteiros, prontos para um novo dia. Que começaria, claro, só às 11h da manhã. 

Ah, e tem a questão da ressaca. No meu mundo perfeito não haveriam ressacas. Nada de penitências por abusos passados. As únicas coisas que ficariam de uma bela noitada seriam excelentes lembranças. Até porque nesse mundo perfeito não haveria amnésia alcoólica. Lembraríamos de tudo, sem remorso. 

Não há espaço para arrependimentos e culpas nesse mundo perfeito.

Mulher solteira procura

Cansou da vida de solteira. Da liberdade. Da falta de compromisso. Da devassidão. E da solidão. Resolveu, então, namorar de novo. E, para isso, necessariamente, Danielle precisava arrumar um namorado. Não qualquer um. Por mais que estivesse decidida a por fim à fase free, não abriu mão de jeito algum de seus critérios: bonito, inteligente, alto, generoso, bonito, bem humorado, bom caráter, espiritualizado, fiel, culto, alto, e... bonito. 

Como quem procura emprego, ela se pôs a procurar namorado. Ligou para alguns amigos, reativou antigos contatos, refez seu currículo, ops, seu perfil no Facebook, postando fotos novas e posadas especialmente para a função. Cadastrou-se num aplicativo de paquera (em dois, na verdade). Deixou suas intenções e poréns muito claros em nicknames e frases de efeito no Whatsapp. E recheou sua agenda com atividades que potencializavam suas chances: às segundas, supermercado 24h; terças, vernissages e afins; quartas, festas alternativas; quintas, sinuca; e sextas, zumba. Aos sábados, dois turnos: feirinhas ou shows ao ar livre à tarde, restaurante da moda à noite. No domingo, um programa mais light: parques. E se sobrasse pique, quem sabe um sambão mais tarde? 

Renovou seu guarda-roupa, seguindo dicas de uma personal stylist, brifada especialmente para atender à necessidade de sua determinada cliente. Entrou em um grupo de corrida, com duas intenções: ficar ainda mais irresistível e, quem sabe, arrumar um atleta? Três vezes por semana, no almoço, freqüentava aulas de dança do ventre: era tiro e queda para reativar a feminilidade, diziam.

O resultado de tamanha dedicação foi surpreendente: foi preciso apenas um mês para que Danielle caísse doente, exausta com tantas atividades. Mais 15 dias para perder o emprego, por conta da abrupta queda de rendimento no trabalho. No segundo mês, falida, foi vista pedindo empréstimo para um tio distante. Depois, não se teve mais notícias dela. O perfil do Tinder está desatualizado. E, apesar de offline há tempos, sua descrição no tal app chama a atenção: “Carentinha, precisando de (qualquer) colo. Quem se habilita????”

Acelerou

Olhou mais uma vez pro lado. Já tinha perdido a cabeça há tempos, agora quase perdeu a direção. Aquela mulher, a-que-la mulher, era sua. Sorriu sozinho, passou nervosamente uma das mãos pelos cabelos, a outra segurava o volante, firme até demais.

Alheia ao efeito (ou seria defeito?) que causava nele, ela curtia a paisagem, cantarolando Djavan baixinho e marcando o ritmo com os longos dedos de unhas escuras e vários anéis a tamborilar em suas bronzeadas/torneadas coxas.

Na troca de marcha, ela acariciou distraidamente sua mão. Ele sentiu então o que chamavam de frisson ("ah, era isso?"). Olhou de novo para a amada, que ajeitava os óculos escuros no topo da cabeça. Foi tão sexy, mas tããão sexy, que ele jurava ter visto a cena em slow-motion.

Voltou sua atenção para a longa e reta estrada. Mas logo se perdeu em sinuosos devaneios. Como era possível que ela, a-que-la mulher, estivesse ali? Loira, alta, belíssima, de matar qualquer mulher de inveja - e qualquer homem de tesão. Uma mulher que poderia escolher qualquer um, sem exagero, mas que, vejam só, estava com ele. Desde o mês anterior. Desde a festa do Amaral, ocasião em que virou espécie de troféu. Uma mulher-troféu, sim, e que foi parar na sua estante de prêmios. Sabe-se lá porquê.

Música: “...Quando te vi, aquilo era quase o amor ...” 

Ela (cantando): ... “Você me acelerou, acelerou...”

Ele: Tive uma idéia.

Ela: Ahã...

Ele: Casa comigo? Casa?

Tomado pela emoção, ou pelo choque ao ouvir suas próprias palavras, parou o carro no acostamento, se atirou nos braços dela e chorou, de soluçar.