segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

Depois do match

Virgínia chegou no bar e ele já estava na mesa ("milagre, eles sempre se atrasam", pensou, sorrisinho de lado). Levantou-se rápido ("oba, ele é bem alto!"), cumprimentou com um beijo respeitoso, puxou a cadeira pra ela. "Aquele encontro prometia", comemorou em pensamento. "Sabia que, um dia, esse aplicativo ia servir pra alguma coisa".

Cavalheiro, ele chamou o garçom, pediu a cerveja, uma água pra acompanhar, e sugeriu o petisco. Tirando os jargões típicos de um advogado e palavrões demais pro seu gosto, o papo fluiu bem. E a cada cerveja - que ele bebia bem rápido - a conversa foi se tornando... reveladora.

- Detesto carnaval. Esses bloquinhos espalhados por aí sujando a cidade, incomodando gente de bem... odeio. Um bando de desocupados, isso sim. E um monte de gays, esse povinho.
- Alguma coisa contra os gays, Caio?
- Não, não, nada... desde que eles não fiquem muito perto de mim.

Daí em diante, foi ladeira abaixo.

- Fiquei casado 11 anos, mas minha mulher não acompanhava meu ritmo, meu pique na cama, sabe como é?
- Hum, imagino...
- Ela achava normal umazinha por semana... Cara, umazinha o caralho! Não sou homem de uma por semana. Você tá me entendendo? Mas acho que toda mulher é assim, né? Devagar.
- Eu sei lá! Mas, ô Caio, se vocês não se davam bem nesse "quesito", porque ficou tanto tempo com ela?
- Ah, nada que uma relação extraconjugal não ajudasse... Tive uma namorada por uns 4 anos. Mas nem foi por isso que eu me separei, sabe?
- Sei não, sei de nada.

O petisco chegou, mas Virgínia não tinha estômago pra provar a lula à dorê. Usou a gastrite como desculpa. E mudou de assunto. Viagens! Falou, empolgada, sobre seu reveillon explorando o Nordeste. Ele logo deu sua opinião, todo senhor de si.

- Olha, lá pra cima só gostei de João Pessoa, conhece?
- Sim, amei... cada praia.
- O que me encantou em João Pessoa foram as pessoas, ah, que povo bacana. Gente simpática, educada, quase não vi preto lá.

Virgínia engasgou com a água e molhou toda sua blusa. Pediu licença pra ir ao banheiro. Foi e não voltou mais à mesa. No caminho pro carro, bloqueou o whatsapp do tal. Em casa, desinstalou o aplicativo. E chorou, desgostosa da vida e do ser humano.

Retratos

Não faz tanto tempo assim: tirar foto era uma decisão difícil. Você tinha que ter certeza de que aquele momento, aquela paisagem, a situação toda merecia um pedacinho do seu caro filme. Trinta e seis, vinte e quatro, doze... ah, os filmes de doze poses, então! Que medo de gastar o clique em algo idiota. Era uma decisão e tanto. Não só pelo dinheiro, mas pela escolha. Fotografou aqui, faltou filme pra fotografar mais adiante. Valia a pena? Medo.

E a ansiedade em ver o resultado? Aquela espera gostosa (às vezes angustiante)... Pagava-se até mais pela revelação express, um luxo. E se suas fotos tinham conteúdo mais, digamos, íntimo, era melhor evitar as lojas do shopping. Elas revelavam suas fotos sob o olhar curioso do público. Era uma atração! Vira e mexe apareciam uns nudes. Quase nunca se viam selfies. Também, né, quem gastaria filme com fotos de si mesmo? Quer se ver, vai até o espelho, pô.

Mas então... então vieram as câmeras digitais. E depois os celulares com câmeras. Uma indústria inteira faliu. E a fotografia nunca mais foi a mesma.

Fotografa-se de tudo, várias vezes, de vários ângulos, sob qualquer pretexto. Critério pra que se não precisa "miguelar" o clique? O auto-retrato - ops, selfies - é febre (ficamos mais egóicos?). Fotografar se tornou mais importante do que curtir aquele lugar, aquelas pessoas, aquele momento. Clica, publica, torce pra ser curtido - e sua felicidade chega a depender disso. A ansiedade da revelação de tempos atrás foi substituída pela fissura das curtidas alheias. É tudo tão instantâneo que o velho e bom álbum sumiu junto com os filmes fotográficos. O importante é a popularidade da foto no aqui-agora. Posteridade? Quem precisa disso?

A verdade é que essa mudança no ato de fotografar se reflete também nas relações, que se tornaram descartáveis e instantâneas. É isso mesmo, ou é só nostalgia?