terça-feira, 3 de janeiro de 2017

Daime

Dentro daquele ordinário copinho plástico, aqueles de tomar café, estava o famoso e fétido líquido. A mulher de branco, comandante do evento, balançou incisivamente o copinho em direção ao meu nariz. Titubeei dois, três segundos. Tempo suficiente para criar um mal-estar entre mim, debutante no dito culto, e a mulher de branco. Mas não tinha remédio: era pegar ou correr. Agarrei o copinho barato e, numa só tacada, levei-o à boca, esperando pelo pior (minha amiga Cinthia já havia me alertado: "bebe duma vez, hein? Nem dê chance da bebida passar pela língua. É ruim como o diabo!").


O chá desceu rasgando pela garganta. Ah, nada tão horrível assim. Um mix de boldo com conhaque barato e morno... urina deve ter esse gosto. Bom, talvez seja mesmo muito ruim. Não à toa, uma assistente passa em seguida com uma bandeja com uvas-itália. Santa e doce uva-itália

A mulher continuou a distribuição de ayauaska, embalada por uma música estranha, composta só de batuques primitivos e vocais guturais. Sentados obedientes no chão da sala rústica estavam os participantes do culto. Umas 15 pessoas, de todos os tipos, raças, credos e posturas frente àquela experiência mística. Muitos, macacos-velhos da arte de tomar o líquido sagrado - e, portanto, relaxados. Outros, e eu me incluo nessa turma, estreantes. Pessoas de olhos arregalados, apertando as mãos, pensando seriamente em sair correndo dali.

Ao mesmo tempo em que o gosto ruim sumia da boca, a tensão diminuía. O mais difícil já estava feito: entornar o tal chá. Me encostei na parede e cerrei os olhos, à espera de alguma alucinação, um recado do Além, a visita da minha avó, sei lá. Nada. Olho em volta em busca de alguém tendo convulsões. Nada. De diferente, apenas a assistente que, terminada a função das uvas, estava agora colocando cestos ao lado das pessoas (minha amiga Cinthia também já tinha me contado a respeito dos tais cestos e do festival de vômitos que o chá promove: “um show de horror”, ela disse). 

Tudo calmo até ali. Então resolvi me enrolar no edredom que trouxe especialmente para o evento e tirar um cochilo. Dormi quase que instantaneamente, coisa raríssima. Mas não durou muito... um enjôo esquisito foi tomando corpo a ponto de me despertar por completo. Logo me pus em posição estratégica: ereta, bem ao lado do meu cestinho, pronta para a lambança. O mal-estar cresceu. Nada de golfar. Olhei para os lados e nem sinal da calmaria de minutos atrás. O cenário era bizarro, para dizer o mínimo. Metade dos meus colegas de culto estavam soltando urros homéricos ao mesmo tempo em que colocavam os bofes pra fora. A outra metade parecia em vias de seguir o mesmo caminho: olhos fechados, as pessoas ensaiavam caras e bocas estranhíssimas, como numa aula esdrúxula de expressão corporal. 

A essa altura, o enjôo era descomunal e corri para o banheiro mais próximo, na esperança de aliviar meu desconforto fazendo o que, costumeiramente, faço nessas ocasiões de náuseas: enfiar o dedo médio na garganta.

Nada.

Dedo novamente goela adentro. Sempre funciona. Mas não naquele momento. Estranho... E foi aí que ouvi a voz pela primeira vez:
- Não vai adiantar.

Parei imediatamente e procurei por uma caixa de som. 

- Não vai dar certo hoje. Pode voltar pro seu lugar e conviver com esse enjôo.

Mesmo sem encontrar a caixa de som, resolvi responder.
- Tô passando mal. Vou resolver isso duma vez.
- Não, não vai. Desta vez, não.

Parei de procurar a caixa. Até porque cheguei a uma conclusão assustadora: a voz que falava comigo era igualzinha a minha. Era eu falando comigo mesma. E respondendo pra mim mesma. Será que essa conversa se encaixa no que chamamos de diálogo?

Desisti do recurso dedo na garganta e voltei pro meu cantinho. Mal acabei de me acomodar debaixo do edredom, quando me ouvi de novo:

- Você não pode simplesmente terminar com o incômodo quando bem entender, mocinha. As coisas precisam ter um início, um meio e um fim. Colocar o dedo na garganta interfere num processo muito importante, entendeu? É uma farsa. A farsa do falso alívio. Você resolve por conta própria que é hora de terminar o sofrimento, vai lá e ... fim? E quem te disse que era hora de terminar? Quem disse que não era preciso sentir um pouco mais de incômodo? Quem te disse que era realmente o fim? 

A voz continuou seu sermão implacável:

- Sua ansiedade não te permite viver as relações até o esgotamento pleno. Você interrompe, achando ser o melhor a fazer, não é? O que você não sabe é que o final verdadeiro, aquele que vem naturalmente, é infinitamente mais reconfortante. Olha só...

Senti um líquido quente subir lentamente até a garganta. Peguei meu cesto e, tranqüila, vomitei. Coloquei tudo pra fora. O ayauaska, o mal-estar, a ansiedade, o medo. Lavei a alma por meio daquele jato nojento e irregular. Por fim, veio a sensação de limpeza. A certeza de que tudo de ruim tinha terminado. E terminado bem. Era o fim. De verdade.

Respirei, aliviada, feliz até. Foi o melhor vômito de todos os tempos. 
Grande Hugo.

A voz resolveu continuar sua lição de moral calcada na metáfora do vômito provocado versus a ansiedade que antecipa o fim. Mas o sono era maior do que a vontade de escutar. Me mandei calar a boca e engatei num sono profundo. Cheio de psicodelismo. Bem anos 70. E sem ninguém enchendo minha cabeça de sermões.

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